Como os nossos ancestrais



A ciência trouxe à tona indícios de que, na hora de escolher um parceiro, ainda somos guiados pela biologia e por preferências estabelecidas pela espécie há milhões de anos.

Homem alto, forte, caçador habilidoso e dominador. Mulher jovem, saudável e com potencial para gerar muitos filhos. Em matéria de sexo, ele só se preocupa em engravidar o maior número possível de parceiras. Ela é mais selectiva: o seu objectivo é engravidar de um macho capaz de lhe dar a prole mais apta a sobreviver e encontrar um provedor que a ajude a alimentar e proteger os filhos. Eram assim, nos tempos das cavernas, os protótipos daquilo que os biólogos chamam de "macho alfa" e "fêmea alfa", os reprodutores ideais da espécie. Passaram-se milhões de anos desde então, mas a ciência não pára de trazer à tona indícios de que o comportamento sexual humano, tal e qual se conhece hoje, segue fundamentalmente os mesmos mecanismos psicológicos ancestrais.

A herança evolutiva explica, entre outras coisas, porque é que o sexo e o dinheiro – ou melhor, sexo e status – sempre estiveram intimamente ligados. Nem mesmo uma revolução como a conquista dos direitos da mulher alterou significativamente as velhas tácticas de sedução e os sinais de atracão. A jornalista americana Candace Bushnell, autora do livro que inspirou a série Sex and the City, que retrata as expectativas e frustrações amorosas da mulher moderna, dá o seu testemunho a esse respeito. "A escassez de machos alfa está na raiz do facto de que muitas mulheres tendem a ver as suas semelhantes como inimigas", diz ela. É natural que os ecos do passado primitivo ainda se imponham. Homens e mulheres, afinal de contas, passaram apenas 1% de sua trajectória evolutiva sob os efeitos da civilização. Durante os outros 99%, estiveram à mercê dos seus instintos – que não têm nada de simples.

Desde que o naturalista inglês Charles Darwin publicou A Origem das Espécies, em 1859, a ciência começou a analisar a evolução por meio de uma norma cardeal: a sobrevivência pertence aos mais aptos, e é para sobreviver no seu habitat que as espécies mudam e se adaptam. Visto sob esse prisma da selecção natural, o cérebro humano seria uma máquina de resolver problemas ligados à sobrevivência, e o sexo não passaria de uma recorrência dessa necessidade.

Mas agora há uma nova revolução em curso na ciência que defende que, se estamos aqui, é porque cada um de nós é fruto de uma sequência ininterrupta, que já dura milhões de anos, de relacionamentos bem-sucedidos entre homens e mulheres. Aqueles que sobreviveram saudáveis, mas não tiveram filhos – uma escolha que o homem, como animal inteligente, está habilitado a fazer –, não estão representados entre nós. A meta da evolução seria então a procriação.

Todos nós, pelo menos numa determinada altura da nossa vida, pensamos em sexo – e já há pesquisadores que propõem que o cérebro humano é, na verdade, uma máquina de cortejar. Mais: ele é o maior e o melhor ornamento sexual da espécie humana, assim como a cauda o é para o pavão e os chifres para o touro.

Vejamos: você acaba de se sentar ao lado de um belo representante do sexo oposto no avião e imagina que nada faria passar aquelas dez horas de voo mais rápido do que, digamos, uma boa conversa. Aqui encontramos já a primeira diferença entre o ser humano e, por exemplo, o pavão. Se partisse logo para o ataque e mostrasse a "cauda" provavelmente acabaria por ir visitar uma esquadra da policia. Ou seja, é preciso fazer-se tão atraente quanto o parceiro pretendido, para que ele concorde entrar no seu jogo. Os requisitos são extensos: assunto, senso de humor, bons modos, charme e percepção, para que não continue a falar como uma matraca quando a pessoa do assento ao lado começa a dar indicações de que gostaria de tirar uma soneca reparadora.

A boa aparência ajuda, e muito, mas não é decisiva. De nada adianta um homem ter um maxilar forte – um dos traços mais valorizados pelas mulheres desde tempos imemoriais – se ele come de boca aberta e com alguns sons menos próprios. Homens e mulheres são guiados em grande parte pelos apelos biológicos, mas, com o evoluir da espécie foi-se incluindo a inteligência nessa equação, ao que se convencionou chamar de cultura.

Para se ter uma ideia da complexidade do ser humano, um dos grandes estudiosos da área, o canadense Steven Pinker, elucida um ponto. Na maioria das espécies, o desejo sexual é uma estratégia para propagar os genes. Entre homens e mulheres, não. Entre nós, o desejo sexual é uma estratégia para obter prazer sexual – e esse prazer é que é a estratégia dos genes para se auto propagar. O prazer é tão decisivo para a espécie humana que hoje se aponta o facto de os homens terem, proporcionalmente, o maior pénis entre os primatas. Se o objectivo fosse simplesmente introduzir o máximo de sémen na fêmea, como acontece nos outros primatas, o importante seria ter grande volume testicular, e um órgão sexual apenas funcional. Mas as mulheres parecem ter, desde sempre, apreciado o estímulo táctil que um órgão maior é capaz de proporcionar (ainda que o politicamente correto hoje mande dizer que tamanho não importa). E, como são as mulheres que estão ao volante da selecção sexual – porque elas precisam ser selectivas –, os homens acabaram por adquirir a aparência que têm, sem maior função biológica além de cativar as emoções de suas parceiras. Pode ser essa também – a implacável selecção sexual exercida pelas mulheres – a razão para o que alguns estudos têm revelado: que os homens considerados bonitos costumam ter sémen mais saudável do que o de seus colegas esteticamente menos favorecidos.

Isso quer dizer que uma questão tão polémica nos dias actuais – a da ditadura da beleza – tem origens bem anteriores à indústria da moda. Ainda que os padrões de beleza variem conforme a cultura e a época, eles obedecem a algumas constantes. Primeiro, os sinais de diferenciação sexual. Os homens apreciam nas mulheres os lábios mais cheios, a cintura fina e os seios, enquanto que as mulheres valorizam a voz grossa, o queixo forte, a musculatura. Outra constante é a simetria, que hoje sabe-se ser um sinal clássico de saúde genética, reconhecido como tal pela maioria das espécies.

O ser humano está tão programado para captar estes sinais que o simples observar de um rosto belo desencadeia reacções intensas de prazer. A área cerebral activada é, curiosamente, a mesma que provoca nos viciados em drogas ou no jogo aquele "click"no momento em que se entregam ao seu hábito. E não é por acaso que esta também é uma das áreas mais antigas do cérebro, formada em tempos que precedem em muito o surgimento da linguagem. Os feios e as feias, assim, que perdoem a evolução: a beleza é mesmo um vício humano, cultivado durante milhões de anos.

Ainda que muitas das preferências ditadas pela selecção sexual já não tenham razão de ser hoje em dia, quando a vida é muito menos brutal do que no tempo das cavernas, elas estão tão arreigadas no cérebro humano que continuam a ditar comportamentos. Veja-se, por exemplo, o caso da altura. É um facto estatisticamente comprovado que as mulheres preferem homens mais altos do que elas. Nos primórdios da humanidade, os motivos para tal eram claros: se um homem podia investir tanta energia nutricional na sua altura, ele tinha saúde para dar e vender – e os seus genes, portanto, eram desejáveis. A altura seria, assim, não só uma vantagem em termos de força física, mas também um adorno sexual.

Este raciocínio parece ir contra algumas situações, que se vêem hoje em dia, como é o caso do empresário poderoso, mas baixo, que se rodeia de mulheres com vários palmos de vantagem sobre ele. Para alguns estudiosos, não há nenhuma contradição, e sim uma resposta directa aos ditames da biologia. Com a escolha destas parceiras, este homem está a "divulgar" que o que lhe falta em altura lhe sobra em capacidade como provedor – e, portanto, como difusor de seus genes.

Sabe-se que também existem diferenças na forma de funcionamento entre os cérebros masculino e feminino. Desde o berço, os meninos tendem, de forma geral, a ser "sistematizadores", enquanto que as meninas são, em geral, mais "comunicadoras": eles resolvem problemas com mais eficiência, elas avançam mais na linguagem. Mesmo na vida adulta, quando a educação, a cultura e a vida em sociedade já procuraram igualar a maioria das habilidades entre os sexos, podemos encontrar diferenças marcantes. Qualquer casal já passou por uma discussão em que ela remói como ficou magoada com ele naquele dia de Outubro de 1991, e ele jura não ter a menor recordação do episódio. Vários estudos indicam que nenhum dos dois está a mentir.

Imagens feitas ao cérebro, através de ressonância magnética, de homens e mulheres quando submetidos a uma mesma experiência emocional intensa mostram um cenário contrastante: enquanto apenas certas áreas do cérebro masculino se acendem, o delas parece uma árvore de Natal. A quantidade, e o tipo, dos circuitos activados pela emoção é o que explica o facto de eles não tardarem a esquecer os sentimentos provocados pela experiência, enquanto que os delas permanecem nitidamente impressos na memória – e prontos a causar muitas desavenças conjugais pelas décadas vindouras.

Outro traço que as mulheres têm de forma muito mais acentuada que qualquer outro primata é a ovulação oculta. Trata-se de um truque que ofereceu às mulheres uma série de vantagens evolutivas. À medida que o homem se foi tornando um animal social e politicamente organizado a ovulação oculta começou a atender a outro propósito: o de manter o parceiro interessado.

Começam a surgir evidências de que hoje as mulheres tiram mais uma vantagem dessa característica: a de "pular a cerca" sem dar nas vistas. Elas sabem quando estão no período fértil mas não precisam contar a ninguém. E há mesmo provas de que elas olham muito mais para outros homens durante o período fértil – e que os homens reagem mostrando-se muito mais atenciosos nessa fase do mês do que em qualquer outra.

Pesquisadores da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, deram-se ao trabalho de medir a incidência com que os maridos dão ramos de flores, fazem telefonemas inesperados e convidam para jantares românticos, e descobriram que esses mimos coincidem maciçamente com o período fértil das esposas. Ou seja, ambos estão atendendo a desejos ancestrais: elas, o de procurar sempre os melhores genes para combinar aos seus, e eles, o de vigiar a sua fêmea – mas com tácticas que empregam todos os benefícios da civilização.

Na sua procura ancestral pelo melhor material genético, as mulheres, de facto, não raramente pulam a cerca. Estudos feitos nos Estados Unidos indicam que em média 10% das crianças não são filhos biológicos dos maridos das suas mães, e sim fruto de "fugidas" conjugais. Noutra pesquisa recente, realizada por dois cientistas americanos com 349 pessoas casadas de ambos os sexos, nada menos que 34% das entrevistadas tinham fantasias sexuais frequentes com outros homens. Sejam casadas ou solteiras, no entanto, as mulheres não chegam nem perto da performance dos homens quando o assunto é variação de parceiros. Embora elas costumem ser evasivas sobre o assunto mesmo em pesquisas, as estatísticas sugerem que os homens têm pelo menos três vezes mais relações fortuitas – o tal sexo casual.

O homem da idade da pedra também era insaciável: há evidências arqueológicas de que era comum que ele tivesse até dez mulheres. Para os cientistas, o facto dos machos humanos serem 15% maiores que as fêmeas é um indicativo de que havia competição violenta entre eles pela posse delas. Enquanto os vencedores conseguiam propagar os seus genes à vontade, aos perdedores restava aproveitarem-se dos descuidos dos rivais – quando estes partiam para uma longa caçada, por exemplo –, para ter acesso às mulheres.

Uma estratégia adoptada pelos machos de algumas espécies de animais permanece até hoje em voga entre os homens: se ele não é o líder pode tirar bom proveito se for amigo dele. Veja-se, por exemplo, o que pesquisadores descobriram sobre uma espécie australiana de pássaro. Os machos menos vistosos não largam aqueles que são mais coloridos e apreciados pelas fêmeas. Ficam sempre por perto, cooperam com o casal – e, quando o titular menos espera, fecundam a fêmea. Entre os homens, os amigos também podem ser rivais traiçoeiros. Segundo David Buss, os companheiros mais íntimos de um homem são aqueles que têm mais condições de vir a traí-lo – sob o manto da fraternidade, podem acalentar desejos inconfessáveis pela namorada alheia e, com sorte, até concretizá-los.

A evolução forneceu aos machos humanos, ainda, uma característica psicológica que as mulheres detestam: eles são capazes de se apaixonar loucamente e fazer as maiores juras de amor – para logo se desinteressarem da parceira. E ambos os sexos aprenderam que uma boa intriga pode ser uma arma valiosa para destronar eventuais concorrentes. Pesquisadores da Universidade do Texas fizeram um estudo para saber até que ponto as pessoas são capazes de se valer da maledicência para fisgar um parceiro alheio. Nada menos que 60% dos homens e 53% das mulheres responderam que já tinham tentado sabotar alguma relação – e disseram-se bem-sucedidos em um terço dessas tentativas.

A psicologia evolutiva mostra que o modo de pensar dos homens muda radicalmente quando eles estão à procura de uma parceira fixa. Quando isso acontece, eles revelam-se tão selectivos quanto as mulheres, pois estão a fazer aquilo que os cientistas chamam de "alto investimento parental" numa futura prole – quer dizer, abdicam da estratégia de propagar os seus genes com o maior número de fêmeas possível e passam a apostar as suas fichas numa eleita. Nesta fase, eles podem até enumerar inteligência, simpatia e companheirismo como atributos desejáveis numa mulher. Mas a herança ancestral faz com que procurem, acima de tudo, outras qualidades: beleza e juventude.

A ciência tem demonstrado que, ao embarcar num casamento, os homens sofrem uma notável alteração biológica. Num estudo realizado por pesquisadores da Universidade Harvard compararam-se os níveis de testosterona de solteirões e de maridos que dedicam boa parte de seu tempo à família. É essa hormona que regula, entre outras coisas, o apetite sexual e a agressividade dos homens. Verificou-se que a quantidade de testosterona no organismo dos casados tende a ser menor do que nos indivíduos que estão solteiros. Ou seja: não é à toa que muitos tornam-se mais pacatos depois do casamento, transferindo a energia que gastariam na corte às fêmeas para tarefas como levar as crianças à creche ou passear com o cão da família.

Kevin McGraw, biólogo da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, examinou milhares de anúncios pessoais publicados por mulheres em jornais de 23 cidades americanas, e chegou a conclusões no mínimo curiosas. Nas cidades maiores, onde há grande disputa pelos "recursos naturais" – emprego, residência, dinheiro –, os requisitos mais comuns são que o candidato seja "financeiramente estável", ou "profissional e inteligente". Nas menores, onde os confortos do dia-a-dia são mais acessíveis, as mulheres tendem a enfatizar, nos seus anúncios, as qualidades morais e sentimentais da alma gémea que gostariam de encontrar.

O mais intrigante na espécie humana é que a quantidade de semelhanças entre os sexos supera em muito a quantidade de diferenças. Nas outras espécies não é assim. Pavões machos têm uma cauda longa, colorida e ornamentada, enquanto que as fêmeas são arrematadas por poucas penas sem graça. Já homens e mulheres compartilham todos os seus "adornos sexuais" – o seu gosto pelo desporto, pela arte, pela linguagem e pelo poder. Isso torna-nos realmente uma espécie única. Quando homens e mulheres produzem e assimilam cultura, pode-se dizer que estão a refinar as suas estratégias de sedução, ainda que nem lhes ocorra que é isso que estão a fazer, e que os benefícios são muito mais amplos do que o sucesso com o sexo oposto.

Resumindo: homens e mulheres têm de se aperfeiçoar sempre, e no mesmo passo, para serem capazes de julgar os méritos uns dos outros e atribuir-lhes o devido valor. A selecção sexual pode ser o mais antigo e primitivo dos nossos instintos. Mas é ela que nos faz civilizados.

Adaptado do original de Isabela Boscov e Marcelo Marthe, Revista Veja Edição 1812, 23JUl2003

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