Maria tinha dificuldades de aprendizagem, mas era bem comportada. Até aos 15 anos, quando foi transferida para uma nova turma do 7.º ano e alguns colegas começaram a humilhá-la porque não sabia ler. Tornou-se agressiva com os professores, faltava às aulas, chegava tarde a casa. Começou a andar na companhia de dois alunos com problemas de indisciplina, associados a um gangue de assaltos à mão armada e tráfico de droga.
O que começou como um problema de bullying, transformou-se em caso de polícia e abandono escolar. Por vezes, as vítimas passam a agressores, mas o mais frequente é a relação de poder ser perpetuada pelo silêncio. Para ajudar as vítimas de bullying, a Associação Nacional de Professores (ANP) lançou uma linha telefónica de apoio a alunos e famílias, através do número 808 968 888 e do e-mail bulialuno@anprofessores.pt.
“Tudo o que tenha a ver com fenómenos de indisciplina ou problemas de violência tem reflexos no processo educativo”, lembra João Grancho, presidente da ANP. Por isso, o novo projecto da associação, designado Espaço ComVivência nas Escolas, é abrangente: para além da nova linha telefónica para atendimento a alunos e famílias, engloba a já existente linha SOS Professor, lançada em finais de 2006 (808 962 006). Foi, aliás, através deste contacto que alguns professores e pais começaram a falar de bullying.
As histórias que têm chegado à ANP vão “dos casos mais simples, de insulto e diminuição, a casos mais graves, como a perseguição fora da escola”.
Problemas com armas, João Grancho não revela se há. Limita-se a dar razão ao procuradorgeral da República, que há alguns meses alertou para a existência de armas nas escolas. No ano lectivo de 2006/ 2007, o Ministério da Educação registou 140 casos em que houve violência praticada com armas nas escolas. Mas João Grancho fala doutros casos. De tráfico de telemóveis, por exemplo. “Há grupos que fornecem telemóveis a três ou quatro alunos, que por sua vez os alugam a outros. Há miúdos que não têm possibilidade de dispor de telemóvel topo de gama, ou um mp3. Se alugarem, podem exibir-se.”
A iniciativa da ANP surgiu no ano lectivo de todas as complicações para professores e alunos – não foi só a avaliação dos docentes que causou tumultos entre a classe: a agressão de uma aluna a uma professora da Escola Secundária Carolina Michäelis, no Porto, trouxe para a ribalta a questão da indisciplina e da violência escolar. E nem o fim das aulas fez esquecer o problema: a realização, em Lisboa, da 4.ª Conferência Internacional sobre Violência Escolar e Políticas Públicas, nos passados dias 23, 24 e 25 de Junho, voltou a lembrar o tema, com a ministra da Educação a considerar a violência escolar como um fenómeno residual.
Mas foi precisamente numa tentativa de reduzir o impacto dos “indicadores crescentes de indisciplina, violência e bullying em contexto escolar”, que a ANP lançou a linha de apoio ao bullying, explica Fátima Marinho, responsável na direcção da ANP pelo projecto. A intenção é envolver toda a comunidade escolar: a iniciativa inclui não só uma linha de apoio a alunos e familiares, mas também “acções concretas de formação e informação dirigidas a toda a comunidade educativa”.
O termo bullying não inclui todas as formas de violência. A definição aponta para a agressão entre pares, de forma continuada e intencional. Está em causa um abuso sistemático de poder, que abrange a violência física e psicológica: o agressor intimida, humilha ou faz circular rumores, cada vez mais através das novas tecnologias.
Maria Beatriz Pereira, do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, co-autora, com Adelina Paula Pinto, do livro ‘Escola e Criança emRisco: Intervir para Prevenir’, sublinha que o uso de armas nas escolas “não é caso tão raro como às vezes se pensa”. Os alunos usam, sobretudo, armas brancas e fazem-no para intimidar as vítimas. O bullying começa cedo, com alunos de tenra idade, mas, se não for corrigido, evolui. “O bullying é frequente em crianças muito novas, no 4.º, 5.º, ou 6.º ano de escolaridade. A partir daí não é tão frequente, mas os casos graves aumentam”, nota Maria Beatriz Pereira.
O fenómeno está relacionado com a aprendizagem das crianças, ao nível da resolução de conflitos sem recurso à violência. “Logo no primeiro ciclo há situações que a escola pode diagnosticar, pedindo apoio externo nos casos que seja incapaz de resolver sozinha. A partir dos 12 anos já é mais difícil resolver estes problemas no âmbito da aprendizagem natural. E avançase para casos mais graves, em que se arranja um grupo, depois um gangue, uma arma branca e uma arma de fogo”, descreve a investigadora.
Na 4.ª Conferência Internacional sobre Violência Escolar e Políticas Públicas, a investigadora apresentou já resultados de 2008: comparando com 2004, este ano corresponde a um agravamento do envolvimento em bullying no grupo dos alunos com 15 anos, mas este agravamento circunscreve-se aos mais velhos, "sugerindo que o problema não está a ser renovado pelos mais novos", sublinha Margarida Gaspar de Matos.
No ano passado, um relatório do Centro de Pesquisa Innocenti da UNICEF, que mede e compara o bem-estar de crianças e jovens nas economias mais avançadas do mundo, dava sinais de alerta sobre o bullying em Portugal. A par da Suíça e Áustria, Portugal surgia como um dos países onde a prevalência de bullying ascendia a mais de 40% das crianças.
Ana Cristina Gomes, in DESTAK, 14 Jul2008
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